Inspirações







...You have to be fully involved, you have to become one with what you are doing...

Chogyam Trungpa, Meditation in Action













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Se a graça lhe está reservada, o discípulo mergulhará em si e lembrar-se-á que a obra interior a realizar, se de facto quiser cumprir a sua vocação de artista, é mais importante que todas as obras exteriores, por mais ofuscantes que sejam. 

Eugen Herrigel, Zen e a arte do tiro com arco 






O meu coração 
repousa dentro
destas cinco tigelas

Matsuo Bashô, O Eremita Viajante





Arte é força de vida tornada visível

Arte é absorção na ação e na quietude do silêncio

Arte é silêncio tornado visível

Arte é o sagrado tornado visível

Arte é fragmentação e unificação do corpo, discurso e mente

Arte é uma prática de sentar com o Divino, juntar-se ao Divino e servir o Divino.


Michael Franklin, Art as Contemplative Practice







O artista procura ser uma ferramenta de harmonia e equilíbrio, porque a sua manifestação, a sua essência, é harmonizar a vida, equilibrar a vida. […] A vida interna tem a capacidade de passar símbolos para a vida externa. Estes, com uma linguagem muito sintética mas poderosa, estimulam a transformação dos seres. Quando você vê uma pintura ou escuta uma música que foi inspirada pela vida interna, fica perante aquele símbolo que estimula, em si, a síntese para se afastar da superficialidade e encaminha a sua consciência para a simplicidade […]. A verdadeira arte é um contributo profundo para a consciência, só tem esse sentido – um contributo profundo para a vida. Por isso falamos de arte de viver. E como é que todos podemos treinar para ser artistas desta natureza, da arte de viver? Temos que ir para a fonte dessa arte que é a consciência, a essência presente em todos nós, no nosso interior. 

Daniel Gagliardo, Palestra Da arte a nível psíquico à arte de viver 








O carpinteiro Tching esculpiu a madeira de uma árvore para fazer um suporte para sinos. Quando ficou pronto, os que o viram ficaram espantados, como se fosse um fantasma ou um espírito. 
Quando o Marquês de Lu viu o suporte, perguntou-lhe: 
-Que arte usaste para o fazer? 
E ele respondeu: 
-Que arte poderia ter este teu servo?
Mas há uma coisa que lhe posso contar. 
Desde que tomei a meu cargo fazer o suporte para sinos, 
Nunca me atrevi a desperdiçar o meu sopro vital 
E senti necessidade de fazer jejum para acalmar a mente. 
Jejuei durante três dias sem me atrever a pensar 
Em felicitações ou recompensas, 
Ou no meu cargo ou no meu salário. 
Ao fim de cinco dias de jejum, já não me atrevia a pensar 
Em críticas e elogios, 
Ou na minha maestria ou inaptidão. 
De repente, ao fim de sete dias de jejum, 
Tinha-me esquecido de mim mesmo 
Como tendo quatro membros, uma forma e um corpo. 
Era o momento adequado. 
Já não existia para mim a corte do duque. 
A minha destreza estava focada 
E tudo o que era estranho à estrutura do suporte desaparecera. 
Foi então que entrei na floresta da montanha e observei a sua natureza celestial. 
Apareceu um tronco perfeito! 
E vi nele o suporte dos sinos completo. 
Só depois disso apliquei as minhas mãos a trabalhar no tronco. 
Se não tivesse sido assim, teria desistido. 
Por isso, o que fiz foi ajustar o celestial ao celestial. 
E é essa a razão por que as pessoas se perguntam 
Se um espírito terá participado na minha obra.”

Chuang Tse, Tradução e Comentários de António Miguel de Campos, Relógio d´Água, 2017 





[...] pinto como exercício profundo de mim [...]

Clarice Lispector, Água Viva









A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética II








Em Lagos em Agosto o sol cai a direito e há sítios onde até o chão é caiado. O sol é pesado e a luz leve. Caminho no passeio rente ao muro mas não caibo na sombra. A sombra é uma fita estreita. Mergulho a mão na sombra como se a mergulhasse na água. 
A loja dos barros fica numa pequena rua do outro lado da praça. Fica depois da taberna fresca e da oficina escura do ferreiro. 
Entro na loja dos barros. A mulher que os vende é pequena e velha, vestida de preto. Está em frente de mim rodeada de ânforas. À direita e à esquerda o chão e as prateleiras estão cobertos de louças alinhadas, empilhadas e amontoadas: pratos, bilhas, tigelas, ânforas. Há duas espécies de barro: barro cor-de-rosa pálido e barro vermelho-escuro. Barro que desde tempos imemoriais os homens aprenderam a modelar numa medida humana. Formas que através dos séculos vêm de mão em mão. A loja onde estou é como uma loja de Creta. Olho as ânforas de barro pálido poisadas em minha frente no chão. Talvez a arte deste tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor. Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar. 
A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode ser separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de uma beleza poética. 
Olho para a ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo, religação. 
Olho para a ânfora na pequena loja dos barros. Aqui paira uma doce penumbra. Lá fora está o sol. A ânfora estabelece uma aliança entre mim e o sol. 
Olho para a ânfora igual a todas as outras ânforas, a ânfora inumeravelmente repetida mas que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um princípio incorruptível. 
Porém, lá fora na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são oferecidas. Coisas diferentes. Não têm nada de comum nem comigo nem com o sol. Vêm de um mundo onde a aliança foi quebrada. Mundo que não está religado nem ao sol nem a lua, nem a Ísis, nem a Deméter, nem aos astros, nem ao eterno. Mundo que pode ser um habitat mas não é um reino. O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece.

Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão. Semelhante ao corpo de Orpheu dilacerado pelas fúrias este reino está dividido. Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa.

É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa. Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro, reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética I